segunda-feira, 18 de março de 2019

Estudo do conto A INAUDITA GUERRA DA AVENIDA GAGO COUTINHO (parte III)

Estudo do conto A Inaudita Guerra da Avenida gago Coutinho.

( Continuação )


Tudo isto, e sobretudo a zipada de água que alguém atirou de uma janela e que caiu sobre Ibn-el-Muftar, deixou  o chefe da tropa moura de tal forma irritado que avançou com uma carga de cavaleiros aos gritos de guerra e de alfange em riste, amolgando capots de automóveis, em direção aos homens do comissário Nunes. Perante a iminência do ataque mouro, diz o narrador, criando uma vez mais uma situação repassada de humor e de ironia: “(...) os briosos homens da Polícia de Intervenção corriam a bom correr até à cervejaria Munique, onde se refugiaram atrás do balcão, deixando a moirama senhora da placa central da Praça do Areeiro.
E a ação flui, a passos largos, num ritmo acelerado e sem interrupções, para o ponto de maior tensão dramática. E a situação cada vez se complica mais com a chegada de novas forças policiais. Os blindados do Ralis não conseguiram passar, ficaram retidos num medonho engarrafamento de camiões TIR, mas o capitão Aurélio Soares, à frente da sua companhia de intendentes, conseguiu, a custo, passar. Chegado ao local, confrontando-se com milhares de mouros, a maior parte dos quais a cavalo, que se apertavam na Avenida Gago Coutinho por entre o tráfego da hora de ponta, não pôde deixar de se lamentar numa exclamação sentida e compreensível: “Estas coisas só me acontecem a mim!” Esta exclamação, bem como o facto de se esquecer dos milhares de indivíduos que com ele partilhavam aquela situação, demonstra bem seu estado de desespero, gerando, também, uma situação de cómico.
Apesar do insólito da situação, havia que agir. O capitão Aurélio Soares, resguardado pelos seus homens e empunhando um pano branco, dirigiu-se a Ibn-el-Muftar e ao seu estado-maior que vinham já ao seu encontro. Dispunham-se então a conversar, chegando mesmo a trocar algumas palavras de saudação: “Salam Aleikum”, quando, de repente, a deusa Clio acordou do seu sonho num sobressalto, e logo atentou no erro cometido. É esta frase que põe fim à insustentável situação vivida por aqueles dois grupos antagónicos de personagens e que marca, em termos estruturais, a transição da 2.ª parte do conto – o desenvolvimento – para a 3.ª parte – a conclusão.
Com efeito, Clio, ao despertar e ao aperceber-se do erro cometido, logo desfez o emaranhado dos fios, reconduzindo cada personagem à sua época. Assim, do mesmo modo inexplicável como haviam surgido os árabes na Avenida Gago Coutinho na manhã de 29 de setembro de 1984, assim desapareceram misteriosamente. E não podendo Clio apagar totalmente os vestígios dos acontecimentos decorridos, pôde, pelo menos, toldar a memória dos homens com borrifos de água do rio Letes, o rio do esquecimento. Deste modo, para Ibn-el-Muftar, as consequências não foram muito gravosas, já que, considerando todas aquelas aparições como sendo de mau agoiro para uma investida, desistiu de atacar Lixbuna, esperando por outra oportunidade mais propícia e aproveitou, à guiza de compensação, para talar os campos de Santarém. A mesma sorte não tiveram os policiais e militares do séc. XX que se viram obrigados a explicar, “em processo marcial, o que se encontravam a fazer naquelas zonas à frente de destacamentos armados” , ensarilhando o trânsito e gerando a confusão e o pânico.
Estamos, portanto, perante uma narrativa fechada, pois o conflito é solucionado, sendo-nos dadas a conhecer as consequências para cada um dos grupos contendores. 


FONTE : Rosa Maria Soares Couto, “Subsídios para uma leitura orientada do conto
A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho de Mário de Carvalho”

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