segunda-feira, 18 de março de 2019

Estudo do conto A INAUDITA GUERRA DA AVENIDA GAGO COUTINHO ( parte II)

Continuação dos apontamento sobre o conto A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho


Encontramos personagens   individuais   com   algum   protagonismo,  pertencentes   ao   séc.   XX,  essencialmente: o agente da PSP, Manuel Reis Tobias; Manuel da Silva Lopes, condutor de camiões distribuidores de grades de cerveja; o comissário Nunes; e o capitão Aurélio Soares. Do séc. XII, temos: Ibn-el-Muftar e Ali-Ben-Yussuf, seu lugar-tenente.
Todas as outras personagens, que formam a  “multidão”  que  se  vai  apinhando  na  Avenida  Gago  Coutinho,  não  passam  de  figurantes,  cuja  única função é conferir alguma verosimilhança a uma história particularmente inverosímil.

O insólito da situação, que a todos deixa perplexos, leva a que se façam suposições quanto às suas hipotéticas causas. O árabe el-Muftar interroga-se: “Teriam  tombado  todos  no  inferno  corânico?  Teriam  feito  algum  agravo  a  Alá?  Seriam  antes  vítimas  de  um  passe  da  feitiçaria  cristã?  Ou  tratar-se-ia  de  uma  partida  de  jinns encabriolados?

Estas  hipóteses,  colocadas por  Ibn-el-Muftar  para  tentar  explicar  tão  estranha  situação,  evidenciam  a  surpresa  e as incertezas  da  personagem,  reveladas  não    no  elevado  número  de  hipóteses apresentadas, mas também no uso do condicional e das sucessivas interrogações retóricas que o árabe, em jeito de monólogo, coloca a si mesmo, numa tentativa desesperada de compreender
o que se passa à sua volta.

  o  agente  da  2.ª  classe  da  PSP,  Manuel  Reis  Tobias,  que  estava  de  serviço  à  entrada  da  Avenida  Gago  Coutinho,  julga  tratar-se  de  um  desfile  qualquer.  Mas  vejamos,  para  melhor  compreender o insólito da situação, a descrição que ele faz da situação através da mensagem que enviou pelo intercomunicador da mota para o posto de comando: “ Uma multidão indeterminada de indivíduos do sexo masculino, a maior parte dos quais portadores  de  armas  brancas  e  outros  objetos  contundentes,  cortantes  e  perfurantes,  com  bandeiras  e  trajos  de  carnaval,  montados  em  solípedes,  tinham  invadido  a  Avenida  Gago  Coutinho e parte do Areeiro em manifestação não autorizada. Uma vez confirmado não estarem previstos desfiles, toda a máquina policial se viu obrigada a ingerir-se na ocorrência”, tendo solicitado a colaboração da tropa do Ralis (Regimento de Artilharia de Lisboa) e da Escola Prática de Administração Militar, o que contribuiu para adensar mais ainda a tensão que caracterizava a situação vivida.

Enquanto isto, os automobilistas, irritadíssimos, vaiavam a tropa moura e comentavam que aquele aparato todo devia ser para algum reclame ou para um filme. E neste impasse, automobilistas e a tropa do almóada, apertados na Avenida Gago Coutinho como sardinha em lata, esperavam ansiosamente que, como que por milagre ou passe de feitiçaria, aquela situação se resolvesse.

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Mas Clio continuava adormecida e ainda não foi desta vez que a situação se resolveu. Aliás, ela agravou-se mais quando Manuel da Silva Lopes, “que conduzia um daqueles irritantes camiões carregados de grades de cerveja que a providência encarregou de ensarilhar os trânsitos em Lisboa, resolveu, em má hora,  abandonar  o  volante,  apear-se,  e,  de  certo enciumado  pela  concorrência,  apontar  um  calhau miúdo que foi ecoar no broquel do beduíno Mamud Beshewer.”

Note-se  a  forma como  o narrador   se  posiciona:  situa-se fora da história– daí a narrativa estar na 3.ª pessoa – conta-nos, como narrador/ observador, os acontecimentos filtrados, contudo, por uma posição subjetiva, originando, por vezes, situações de grande humor (resolveu(...) Beshewer) e, por outras, de fina ironia (providência(...) Lisboa). A sua inscrição na história como narrador heterodiegético com  uma  posição  de  superioridade,  que  lhe  acentua  o  seu  distanciamento  irónico  e  a  sua  veia  humorística.
Este gesto descuidado de Manuel da Silva Lopes originou, como resposta, uma saraivada de setas por  parte  dos  mouros,  levando  os  automobilistas  a  procurarem  refúgio,  ao  mesmo  tempo  que  vociferavam protestos, causando um ruído ensurdecedor. E é este ruído que o comissário Nunes, que chefiava os pelotões de choque, ouviu, e, prontamente, admitindo tratar-se da canalha a desafiar a polícia, mandou que os seus homens varressem tudo a eito, à bastonada, o que provocou algumas baixas e sobretudo muita cabeça partida.Constate-se que o humor e a ironia, neste caso face aos métodos policiais (Toca a varrer isto tudo (...) à bastonada, a eito, por aqui e por além), continuam a estar presentes no texto.

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