Encontramos personagens individuais com
algum protagonismo, pertencentes
ao séc. XX, essencialmente:
o agente da PSP, Manuel Reis Tobias; Manuel da Silva Lopes, condutor de camiões
distribuidores de grades de cerveja; o comissário Nunes; e o capitão Aurélio
Soares. Do séc. XII, temos: Ibn-el-Muftar e Ali-Ben-Yussuf, seu lugar-tenente.
Todas as outras personagens, que formam a “multidão”
que se vai
apinhando na Avenida
Gago Coutinho, não
passam de figurantes,
cuja única função é conferir
alguma verosimilhança a uma história particularmente inverosímil.
O insólito da situação, que a todos deixa
perplexos, leva a que se façam suposições quanto às suas hipotéticas causas. O
árabe el-Muftar interroga-se: “Teriam tombado
todos no inferno
corânico? Teriam feito
algum agravo a
Alá? Seriam antes
vítimas de um
passe da feitiçaria
cristã? Ou tratar-se-ia
de uma partida
de jinns encabriolados?”
Estas
hipóteses, colocadas por Ibn-el-Muftar
para tentar explicar
tão estranha situação,
evidenciam a surpresa
e as incertezas da personagem,
reveladas não só
no elevado número
de hipóteses apresentadas, mas
também no uso do condicional e das sucessivas interrogações retóricas que o
árabe, em jeito de monólogo, coloca a si mesmo, numa tentativa desesperada de
compreender
o que se passa à sua volta.
Já o agente
da 2.ª classe
da PSP, Manuel
Reis Tobias, que
estava de serviço
à entrada da
Avenida Gago Coutinho,
julga tratar-se de
um desfile qualquer.
Mas vejamos, para
melhor compreender o insólito da
situação, a descrição que ele faz da situação através da mensagem que enviou
pelo intercomunicador da mota para o posto de comando: “ Uma multidão indeterminada de indivíduos do sexo masculino, a maior
parte dos quais portadores de armas
brancas e outros
objetos contundentes, cortantes
e perfurantes, com bandeiras e
trajos de carnaval,
montados em solípedes,
tinham invadido a
Avenida Gago Coutinho e parte do Areeiro em manifestação
não autorizada. Uma vez confirmado não estarem previstos desfiles, toda a
máquina policial se viu obrigada a ingerir-se na ocorrência”, tendo
solicitado a colaboração da tropa do Ralis (Regimento de Artilharia de Lisboa)
e da Escola Prática de Administração Militar, o que contribuiu para adensar
mais ainda a tensão que caracterizava a situação vivida.
Enquanto isto, os automobilistas,
irritadíssimos, vaiavam a tropa moura e comentavam que aquele aparato todo
devia ser para algum reclame ou para um filme. E neste impasse, automobilistas
e a tropa do almóada, apertados na Avenida Gago Coutinho como sardinha em lata,
esperavam ansiosamente que, como que por milagre ou passe de feitiçaria, aquela
situação se resolvesse.
Mas Clio continuava adormecida e ainda não foi
desta vez que a situação se resolveu. Aliás, ela agravou-se mais quando Manuel
da Silva Lopes, “que conduzia um
daqueles irritantes camiões carregados de grades de cerveja que a providência
encarregou de ensarilhar os trânsitos em Lisboa, resolveu, em má hora, abandonar
o volante, apear-se,
e, de certo enciumado pela
concorrência, apontar um calhau
miúdo que foi ecoar no broquel do beduíno Mamud Beshewer.”
Note-se
a forma como o narrador
se posiciona: situa-se fora da história– daí a narrativa
estar na 3.ª pessoa – conta-nos, como narrador/ observador, os acontecimentos
filtrados, contudo, por uma posição subjetiva, originando, por vezes, situações
de grande humor (resolveu(...) Beshewer) e, por outras, de fina ironia
(providência(...) Lisboa). A sua inscrição na história como narrador
heterodiegético com uma posição
de superioridade, que
lhe acentua o
seu distanciamento irónico
e a sua
veia humorística.
Este gesto descuidado de Manuel da Silva Lopes
originou, como resposta, uma saraivada de setas por parte
dos mouros, levando
os automobilistas a
procurarem refúgio, ao
mesmo tempo que vociferavam
protestos, causando um ruído ensurdecedor. E é este ruído que o comissário
Nunes, que chefiava os pelotões de choque, ouviu, e, prontamente, admitindo tratar-se
da canalha a desafiar a polícia, mandou que os seus homens varressem tudo a
eito, à bastonada, o que provocou algumas baixas e sobretudo muita cabeça
partida.Constate-se que o humor e a ironia, neste caso face aos métodos
policiais (Toca a varrer isto tudo (...) à
bastonada, a eito, por aqui e por além), continuam a estar presentes no texto.
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