( Continuação )
Tudo isto, e sobretudo a zipada de água que
alguém atirou de uma janela e que caiu sobre Ibn-el-Muftar, deixou o chefe da tropa moura de tal forma irritado
que avançou com uma carga de cavaleiros aos gritos de guerra e de alfange em
riste, amolgando capots de automóveis, em direção aos homens do comissário
Nunes. Perante a iminência do ataque mouro, diz o narrador, criando uma vez
mais uma situação repassada de humor e de ironia: “(...) os briosos homens da Polícia de Intervenção corriam a bom correr
até à cervejaria Munique, onde se refugiaram atrás do balcão, deixando a
moirama senhora da placa central da Praça do Areeiro.”
E a ação flui, a passos largos, num ritmo
acelerado e sem interrupções, para o ponto de maior tensão dramática. E a
situação cada vez se complica mais com a chegada de novas forças policiais. Os
blindados do Ralis não conseguiram passar, ficaram retidos num medonho
engarrafamento de camiões TIR, mas o capitão Aurélio Soares, à frente da sua
companhia de intendentes, conseguiu, a custo, passar. Chegado ao local,
confrontando-se com milhares de mouros, a maior parte dos quais a cavalo, que
se apertavam na Avenida Gago Coutinho por entre o tráfego da hora de ponta, não
pôde deixar de se lamentar numa exclamação sentida e compreensível: “Estas coisas só me acontecem a mim!” Esta
exclamação, bem como o facto de se esquecer dos milhares de indivíduos que com
ele partilhavam aquela situação, demonstra bem seu estado de desespero,
gerando, também, uma situação de cómico.
Apesar do insólito da situação, havia que agir.
O capitão Aurélio Soares, resguardado pelos seus homens e empunhando um pano
branco, dirigiu-se a Ibn-el-Muftar e ao seu estado-maior que vinham já ao seu
encontro. Dispunham-se então a conversar, chegando mesmo a trocar algumas
palavras de saudação: “Salam Aleikum”, quando, de repente, a deusa Clio acordou
do seu sonho num sobressalto, e logo atentou no erro cometido. É esta frase que
põe fim à insustentável situação vivida por aqueles dois grupos antagónicos de
personagens e que marca, em termos estruturais, a transição da 2.ª parte do
conto – o desenvolvimento – para a 3.ª parte – a conclusão.
Com efeito, Clio, ao despertar e ao aperceber-se
do erro cometido, logo desfez o emaranhado dos fios, reconduzindo cada
personagem à sua época. Assim, do mesmo modo inexplicável como haviam surgido
os árabes na Avenida Gago Coutinho na manhã de 29 de setembro de 1984, assim
desapareceram misteriosamente. E não podendo Clio apagar totalmente os
vestígios dos acontecimentos decorridos, pôde, pelo menos, toldar a memória dos
homens com borrifos de água do rio Letes, o rio do esquecimento. Deste modo,
para Ibn-el-Muftar, as consequências não foram muito gravosas, já que,
considerando todas aquelas aparições como sendo de mau agoiro para uma
investida, desistiu de atacar Lixbuna, esperando por outra oportunidade mais
propícia e aproveitou, à guiza de compensação, para talar os campos de
Santarém. A mesma sorte não tiveram os policiais e militares do séc. XX que se
viram obrigados a explicar, “em processo
marcial, o que se encontravam a fazer naquelas zonas à frente de destacamentos
armados” , ensarilhando o trânsito e gerando a confusão e o pânico.
Estamos, portanto, perante uma narrativa
fechada, pois o conflito é solucionado, sendo-nos dadas a conhecer as
consequências para cada um dos grupos contendores.
FONTE : Rosa Maria Soares Couto, “Subsídios para uma leitura orientada do conto
A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho de Mário de Carvalho”