sábado, 16 de março de 2019

8- Apontamentos para o estudo do conto A INAUDITA GUERRA DA AVENIDA GAGO COUTINHO


O TÍTULO

O título remete o leitor para o principal acontecimento do conto: uma guerra. Estamos, assim, perante  um  tema  histórico combinado, ao mesmo tempo, com algum humor.
Quanto a inaudita, etimologicamente  significa  “não ouvida, nunca ouvida”. Este termo remete-nos para algo de insólito, de extraordinário e desconhecido, de que não há exemplo ou memória.

É precisa  a  informação que o título nos fornece acerca da indicação do espaço físico que irá servir de campo de batalha à inaudita guerra – a Avenida Gago Coutinho – em Lisboa, avenida que recebeu o nome de uma personagem também histórica: Gago Coutinho, geógrafo, marinheiro, matemático e inventor, que empreendeu um feito igualmente inaudito,  no sentido de algo espantoso,  extraordinário  e  inacreditável:  a  primeira  travessia  aérea  do  Atlântico  Sul,  em  1922,  com Sacadura Cabral.


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TEXTO

O  grande  Homero  às  vezes  dormitava,  garante  Horácio.  Outros  poetas  dão-se  a  uma  sesta, de vez em quando, com prejuízo da toada e da eloquência do discurso. Mas, infelizmente, não são apenas os poetas que se deixam dormitar. Os deuses também.”

Uma falta pode ser cometida até pelos mais sábios e prevenidos, pois “errar é humano”. Mas esta possibilidade de incorrência em erros é alargada a outros poetas, assim não será de estranhar que outros também, de vez em quando, se entreguem a uma “sesta”, como, metaforicamente, nos é dito no conto. Esta
fragilidade não, pois, específica apenas do mundo humano, ela é alargada ao mundo mítico/divino: os deuses  também  são  dados  a  estas  fraquezas. 


Este primeiro parágrafo introduz e justifica, deste modo, o acontecimento decorrido com Clio, musa da História, narrado no segundo parágrafo, e a partir do qual se vai desencadear toda a ação do conto. Daí que o segundo parágrafo se inicie pelo advérbio de modo “assim: “Assim  aconteceu  uma  vez  a  Clio,  musa  da  História  que,  enfadada  da  imensa  tapeçaria  milenária  a  seu  cargo,  repleta  de  cores  cinzentas  e  coberta  de  desenhos  redundantes  e  monótonos, deixou descair a cabeça loura e adormeceu por instantes, enquanto os dedos, por inércia,  continuavam  a  trama.  Logo  se  enlearam  dois  fios  e  no  desenho  se  empolou  um  nó,  destoante da lisura do tecido. Amalgamaram-se então as datas de 4 de junho de 1148 e de 29 de setembro de 1984.”

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 A pretexto de um adormecimento da musa Clio, Mário de Carvalho põe num mesmo espaço um momento do séc. XII e outro do séc. XX. Compreende-se agora a pertinência da escolha do adjetivo “inaudita”.
A partir do terceiro parágrafo vamos ter o desenrolar da ação propriamente dita, consequência do descuido de Clio, a musa da História. Assim, na manhã de 29 de setembro de 1984, os automobilistas que  entravam  em  Lisboa  pela  Avenida  Gago  Coutinho,  em  direção  ao  Areeiro,  vão  deparar-se,  inexplicavelmente, com a numerosa tropa de Ibn-el-Muftar, montada em solípedes, cujo propósito era
conquistar a cidade de Lisboa que havia sido tomada há um ano atrás, em 1147, por Afonso Henriques.

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O  confronto  entre  estes  dois  grupos  de  personagens  tão  diferentes  gera  uma  situação  caótica, que nos é habilmente traduzida de forma realista por Mário de Carvalho através de uma linguagem expressiva, com recurso a sensações auditivas e visuais e a todo um conjunto de termos e expressões lexicais que, para além de nos permitir imaginar, quase visualizar a situação, contribui para dar cor epocal aos tempos cronológicos referidos bem como aos seus contendores, evidenciando distintamente as suas diferenças.

São exemplo do que acabo de referir expressões como:”...e,   por   instantes,   foi,   em   toda   aquela   área,   um   estridente   rumor   de   motores   desmultiplicados,  travões  aplicados  a  fundo  e  uma  sarabanda  de  buzinas  ensurdecedora.”
Este  segmento  textual,  que  se  reporta,  obviamente,  ao  primeiro  grupo  de  personagens:  os  automobilistas  do  séc.  XX,  vai  opor-se  a  outro  segmento,  que  se  refere,  especificamente,  à  tropa  moura de Ibn-el-Muftar do séc. XII:

Tudo isto de mistura com retinir de metais, relinchos de cavalos e imprecações guturais em alta grita.”

Para  conferir  realismo  à  ação,  contribui  igualmente  o  grande  número  de  palavras  de  origem  árabe  existentes  no  texto,  das  quais  podemos  destacar:  alfange, algazarra, alferes, alarde, almóada,  etc.  Note-se,  em  todas  elas,  a  presença  do  artigo  definido  árabe  al (invariável  em  género  e  número),  correspondente  ao  nosso  artigo  definido  o,  a.  Isto  para  já  não  falar nos nomes próprios, como por exemplo: Alá, Lixbuna, Ibn-Arrik (Afonso Henriques), etc.

O  recurso  à  adjetivação, enumeração,  onomatopeias e hipérbole  são outros dos recursos de que o autor lança mão para nos fazer visualizar o pandemónio da situação:
É  que  nessa  ocasião  mesma,  a  tropa  do  almóada  Ibn-el-Muftar,  composta  de  berberes,  azenegues  e  árabes,  em  número  para  cima  de  dez  mil,  (...)  viu-se  de  repente  (envolvida)  por  milhares de carros de metal, de cores faiscantes, no meio de um fragor estrondoso – que veio substituir  o  suave  pipilar  dos  pássaros  e  o  doce  zunido  dos  moscardos  –  e  flanqueado  por  paredes descomunais que por toda a parte se erguiam, cobertas de janelas brilhantes.”
O caos desta situação revela-se tanto maior se relembrarmos que toda esta confusão se encontra concentrada num mesmo espaço: a Avenida Gago Coutinho.

Mas esta concentração não se aplica apenas ao espaço, ela pode aplicar-se também ao tempo, pois, apesar de haver uma dispersão temporal – com a presença de duas
épocas históricas distintas – esta dispersão é apenas aparente, já que as duas épocas confluem e  fundem-se  num  só  momento  temporal, cronologicamente  breve  correspondente  ao  curto  adormecimento de Clio que, metaforicamente, é traduzido pelo nó que logo se formou quando Clio adormeceu, destoando da lisura do tecido da tapeçaria milenária tecida pela musa da História.

FONTE: Rosa Maria Soares Couto, “Subsídios para uma leitura orientada do conto
A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho de Mário de Carvalho”

A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho
de Mário de Carvalho’”

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