O TÍTULO
O título
remete o leitor para o principal acontecimento do conto: uma guerra.
Estamos, assim, perante um tema histórico
combinado, ao mesmo tempo, com algum humor.
Quanto a inaudita,
etimologicamente significa “não ouvida, nunca ouvida”. Este termo
remete-nos para algo de insólito, de extraordinário e desconhecido, de que não
há exemplo ou memória.
É precisa
a informação que o título nos
fornece acerca da indicação do espaço físico que irá servir de campo de batalha
à inaudita guerra – a Avenida Gago Coutinho – em Lisboa, avenida que recebeu o
nome de uma personagem também histórica: Gago Coutinho, geógrafo, marinheiro,
matemático e inventor, que empreendeu um feito igualmente inaudito, no sentido de algo espantoso, extraordinário e
inacreditável: a primeira
travessia aérea do
Atlântico Sul, em
1922, com Sacadura Cabral.

TEXTO
“O grande
Homero às vezes
dormitava, garante Horácio.
Outros poetas dão-se
a uma sesta, de vez em quando, com prejuízo da
toada e da eloquência do discurso. Mas, infelizmente, não são apenas os poetas
que se deixam dormitar. Os deuses também.”
Uma falta pode ser cometida até pelos mais
sábios e prevenidos, pois “errar é humano”. Mas esta possibilidade de
incorrência em erros é alargada a outros poetas, assim não será de estranhar
que outros também, de vez em quando, se entreguem a uma “sesta”, como,
metaforicamente, nos é dito no conto. Esta
fragilidade não, pois, específica apenas do
mundo humano, ela é alargada ao mundo mítico/divino: os deuses também
são dados a
estas fraquezas.
Este primeiro parágrafo introduz e justifica,
deste modo, o acontecimento decorrido com Clio, musa da História, narrado no
segundo parágrafo, e a partir do qual se vai desencadear toda a ação do conto.
Daí que o segundo parágrafo se inicie pelo advérbio de modo “assim: “Assim
aconteceu uma vez
a Clio, musa
da História que,
enfadada da imensa
tapeçaria milenária a
seu cargo, repleta
de cores cinzentas
e coberta de
desenhos redundantes e
monótonos, deixou descair a cabeça loura e adormeceu por instantes,
enquanto os dedos, por inércia,
continuavam a trama.
Logo se enlearam
dois fios e
no desenho se
empolou um nó,
destoante da lisura do tecido. Amalgamaram-se então as datas de 4 de
junho de 1148 e de 29 de setembro de 1984.”

A pretexto de um adormecimento da musa Clio,
Mário de Carvalho põe num mesmo espaço um momento do séc. XII e outro do séc.
XX. Compreende-se agora a pertinência da escolha do adjetivo “inaudita”.
A partir do terceiro parágrafo vamos ter o
desenrolar da ação propriamente dita, consequência do descuido de Clio, a musa da
História. Assim, na manhã de 29 de setembro de 1984, os automobilistas que entravam
em Lisboa pela
Avenida Gago Coutinho,
em direção ao
Areeiro, vão deparar-se,
inexplicavelmente, com a numerosa tropa de Ibn-el-Muftar, montada em
solípedes, cujo propósito era
conquistar a cidade de Lisboa que havia sido
tomada há um ano atrás, em 1147, por Afonso Henriques.
O
confronto entre estes
dois grupos de
personagens tão diferentes
gera uma situação
caótica, que nos é habilmente traduzida de forma realista por Mário de
Carvalho através de uma linguagem expressiva, com recurso a sensações auditivas
e visuais e a todo um conjunto de termos e expressões lexicais que, para além
de nos permitir imaginar, quase visualizar a situação, contribui para dar cor
epocal aos tempos cronológicos referidos bem como aos seus contendores,
evidenciando distintamente as suas diferenças.
São exemplo do que acabo de referir expressões
como:”...e, por
instantes, foi, em
toda aquela área,
um estridente
rumor de motores
desmultiplicados, travões aplicados
a fundo e
uma sarabanda de
buzinas ensurdecedora.”
Este
segmento textual, que
se reporta, obviamente,
ao primeiro grupo
de personagens: os
automobilistas do séc.
XX, vai opor-se
a outro segmento,
que se refere,
especificamente, à tropa
moura de Ibn-el-Muftar do séc. XII:
“Tudo
isto de mistura com retinir de metais, relinchos de cavalos e imprecações
guturais em alta grita.”
Para conferir
realismo à ação,
contribui igualmente o
grande número de palavras de
origem árabe existentes
no texto, das
quais podemos destacar:
alfange, algazarra, alferes, alarde, almóada, etc.
Note-se, em todas
elas, a presença
do artigo definido
árabe al (invariável em
género e número),
correspondente ao nosso
artigo definido o,
a. Isto para
já não falar nos nomes próprios, como por exemplo:
Alá, Lixbuna, Ibn-Arrik (Afonso Henriques), etc.
O
recurso à adjetivação, enumeração, onomatopeias e hipérbole são outros dos recursos de que o autor lança
mão para nos fazer visualizar o pandemónio da situação:
“ É que
nessa ocasião mesma,
a tropa do
almóada Ibn-el-Muftar, composta
de berberes, azenegues
e árabes, em
número para cima
de dez mil,
(...) viu-se de
repente (envolvida) por
milhares de carros de metal, de cores faiscantes, no meio de um fragor
estrondoso – que veio substituir
o suave pipilar
dos pássaros e
o doce zunido
dos moscardos –
e flanqueado por
paredes descomunais que por toda a parte se erguiam, cobertas de janelas
brilhantes.”
O caos desta situação revela-se tanto maior se
relembrarmos que toda esta confusão se encontra concentrada num mesmo espaço: a
Avenida Gago Coutinho.
Mas esta concentração não se aplica apenas ao
espaço, ela pode aplicar-se também ao tempo, pois, apesar de haver uma
dispersão temporal – com a presença de duas
épocas históricas distintas – esta dispersão é
apenas aparente, já que as duas épocas confluem e fundem-se
num só momento
temporal, cronologicamente breve
correspondente ao
curto adormecimento de Clio que, metaforicamente,
é traduzido pelo nó que logo se formou quando Clio adormeceu, destoando da
lisura do tecido da tapeçaria milenária tecida pela musa da História.
FONTE: Rosa Maria Soares Couto, “Subsídios para uma leitura orientada do conto
A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho de Mário de Carvalho”
A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho
de Mário de Carvalho’”
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